A Tenebrosa ida à Treblinka

Por Roberto Leon Ponczek*

Durante o período de planejamento de nossa viagem à Polônia, decidimos eu e meu primo Bobby Melson (Robert Mendelssohn) que iríamos a Treblinka, rezar um Kadish para nossa avó Batsheba (Sheiva) Ponczek, assassinada neste campo de extermínio. Assim que chegamos ao Hotel Polônia Palace, no centro de Varsóvia, começamos a pesquisar como chegar ao nosso destino. As informações eram bastante confusas. Enquanto que um dos empregados do lobby nos disse que bastava pegar um trem na estação central (Centralna Stacia) que ficava a poucos quarteirões do hotel, outros diziam que o trem nos deixaria numa pequena estação e que de lá deveríamos pegar um taxi ou contratar algum carro particular que nos levasse até o nosso destino. Chegamos a perguntar ao diretor do Museu do Gueto de Varsóvia, Dariusz Stola, com quem havíamos agendado um encontro, e este nos confirmou a segunda versão, aconselhando-nos a contratar um taxi que nos levasse diretamente a Treblinka, partir de Varsóvia. De volta ao hotel, propusemos ao taxista de nome Arthur que nos levasse a Treblinka. Acertamos com ele o preço e um horário bem cedo pela manhã porque era dia de Yom Kipur e pretendíamos ainda ir à noite à Sinagoga de Varsóvia para o Kol Nidrei.

Na manhã seguinte no horário combinado, num dia chuvoso e frio, embarcamos no taxi de Arthur, atravessando boa parte de Varsóvia, que nos pareceu triste e sombria com suas largas avenidas e seus prédios quadrados, reconstruídos bem ao estilo stalinista do pós-guerra. Atravessamos o famoso rio Vístula, tão cantado em verso e prosa, mas que à altura de Varsóvia era poluído e cinza. Logo em seguida, ganhamos uma estrada ladeada por florestas tipicamente polonesas (lasy) de pinheiros cujas altas copas desnudavam seus troncos finos. Começamos a exercitar nosso enferrujado polonês com Arthur e às poucos palavras há muito tempo esquecidas começaram a nos surgir, como antigos arquivos mortos armazenados em nossas mentes. Lembrei-me dos contos de fadas que minha mãe me contava e que aconteciam exatamente nessas lasy.

“Os meninos Jasho e Malgocsia foram capturados pela bruxa má (babayaga) que vinha diariamente medir-lhe a circunferência dos dedos para saber se haviam engordado o suficiente para serem por ela devorados”.

Era um conto infantil dos irmãos Grimm, em versão polonesa. Arthur, que tinha um senso humor irônico, respondeu rindo que nessas florestas habitavam dikie zwierzęta, ou seja, terríveis animais selvagens, o que nos fez rir compulsivamente.

 

As florestas polonesas (lasy)
As florestas polonesas (lasy)

 

 

As palavras “dikie zwierzęta” tiveram o mágico poder de me remeter imediatamente à infância que minha mãe me descrevia: “Polskie lasy zamieszkane przez dzikie zwierzęta” (“as florestas polonesas eram habitadas por animais selvagens”). Pequenas casas campestres passavam por nós rapidamente e eu me perguntava em qual delas estavam escondidos Jasho e Malgoscia?  Uma tenebrosa linha de trem insistia em nos acompanhar e Boby perguntou, como se pensasse em voz alta, se estes seriam os mesmos trilhos que conduziam os condenados à morte em Treblinka… Depois de cerca de 1 hora percorrendo os polskie lasy, um caminho estreito e esburacado de barro indicava que nos aproximávamos de nosso destino.

O carro de Arthur serpenteava à esquerda e à direita por esse tortuoso caminho quando finalmente chegamos a uma grande clareira no meio da floresta. Um frio intenso e úmido invadiu nossos corpos e pisávamos numa relva molhada misturado ao barro. No solo rasteiro já semi-encorbertos pelo mato, víamos construções reduzidas apenas ao piso e às fundações do que há cerca de setenta anos atrás eram barracões.

Foto 2 Fundação de um dos barracões que servia de latrina.
Foto 2 Fundação de um dos barracões que servia de latrina.

 

Algumas placas ajudavam-nos a identificá-los: barracões de doentes, barracões de judeus, latrinas etc. Além de mim, meu primo e nosso motorista, só a floresta e os animais selvagens (dikie zwierzęta) nela escondidos estavam presentes. Rezamos aí o primeiro Kadish, primeiramente em tom hesitante e soluçante e, depois de uma forte inspiração de ar frio, prosseguimos em tom mais vigoroso:

Bealmá diverá chir’utê Veiamlích Malchutê veiatsmách purcanê vicarêv meshichê. (Amém). Beichaiechôn uviomêchon uvchaiêi dechôl Beit Israel, ba’ agalá uvizman karív veimrú Amén. (Que seja exaltado e santificado seu grande nome (Amém), no mundo que Ele criou segundo Sua vontade. Que Ele estabeleça Seu Reino, faça vir Sua redenção e aproxime a vinda de Seu Mashiach (Amém) em vossa vida e em vossos dias e na vida de toda a Casa de Israel, pronta e brevemente, e dizei amém.)

Em certo momento, nossas vozes se ampliaram de tal forma como se quiséssemos mostrar a D’us e ao Universo que estávamos vivos…

 

 Foto 3 - Piso de um grande barracão que alojava os judeus
Foto 3 – Piso de um grande barracão que alojava os judeus

 

Em seguida embarcamos de novo no carro de Arthur para procurar o grande e temível lugar de execução. Antes disso, encontramos um pequeno monumento em memória dos ciganos ali executados.

 

Foto 4 - Marco em memória aos ciganos executados em Treblinka
Foto 4 – Marco em memória aos ciganos executados em Treblinka

 

Mais algumas tortuosas curvas adiante e finalmente chegamos ao nosso destino. O local de execução dos judeus… O campo de execução de Treblinka, era um lugar estarrecedor, onde minha avó Stefania (Bathsheba) Ponczek foi assassinada juntamente com cerca de 1 milhão de judeus. Grandes fileiras de pedras pontiagudas fazem às vezes de um imenso e silencioso cemitério coberto por túmulos vazios.

 

Foto 5 - Caminho para as câmaras de gás
Foto 5 – Caminho para as câmaras de gás

 

Foto 6 - O grande cemitério sem corpos.
Foto 6 – O grande cemitério sem corpos.

 

Foto 7 - O local de execução
Foto 7 – O local de execução

 

Tentamos rezar mais um Kadish, em sua triste memória, mas, desta vez, caí em prantos, e mal consegui balbuciar “Yitgadal veyitcadash shemê rabá. ” Saímos de lá petrificados e aterrorizados com a magnitude da maldade humana.

Treblinka é a visão silenciosa de um inferno no meio do nada. Só as florestas polonesas estavam ali presentes para testemunhar, porém os verdadeiros animais selvagens (dikie zwierzęta) não estavam escondidos na floresta, como nos disse Arthur, mas estavam justamente aí perpetrando esse genocídio de proporções cósmicas!

 

*Roberto Leon Ponczek é físico e Professor de Filosofia da Ciência na Universidade Federal da Bahia. Seus pais, Tadeusz e Wanda Ponczek, foram sobreviventes do Gueto de Varsóvia e emigraram para o Brasil em 1946.

 

Todas as fotos foram tiradas pelo autor em outubro de 2016.

 

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